Desabafo #1: surf, mulheres e a mídia

17/02/2020
    • Langai
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  • Esses dias no Instagram, assisti a um vídeo da retrospectiva do surf de 2019 em Maresias (SP). Com o crowd mais florido e a evolução das mulheres no esporte, esperava nos ver representadas. E para minha surpresa, sim! O vídeo começava com uma mulher! Porém, essa mulher aparecia exatamente como nas revistas de surf das antigas: uma mina de biquíni, fora da água. Entre as ondas, vez ou outra rolava aquele close de uma bunda feminina na praia, no entanto, em meio a dezenas de homens, as mulheres surfando de fato mal apareceram. E não por falta de representantes, pois figuras locais como Alana PacelliNicole Pacelli e Bruna Queiroz não estavam no vídeo.

    Fiquei um pouco decepcionada com essa abordagem até então ultrapassada e comentei no post. Fugi da agressividade escrevendo num tom positivo, tentei apenas incentivá-los a tirar esse estereótipo de homem surfando x mulher de biquíni na areia.  A resposta foi apenas: meu comentário deletado. Imaginei que enfrentaria críticas, alguns apoios, mas não imaginei que seria somente abafado. Parece que é melhor deixar do jeito que está, pois é assim faz tempo.


    _o crowd está mais feminino, mas nem tudo são flores. O que acontece é que não somos vistas como surfistas e não ganhamos o devido respeito dentro desse cenário.


    Já ouvi a desculpa de que o surf feminino não é bom o suficiente. Quando na realidade a habilidade da mulher no surf é comparável à do homem. A grande diferença está no acesso.

    Quando comecei a surfar, 8 anos atrás, quase não existiam mulheres na água. Como se espera que a massa de surfistas femininas tenha então o mesmo nível de surf dos homens que sempre se relacionaram com o esporte? Meu primeiro contato com o surf foi há muito tempo, nas revistas antigas. E elas já me passavam a mensagem de que meu lugar era na plateia. Os relacionamentos com surfistas também eram vendidos assim, com a imagem de juntar o útil ao agradável. Afinal, homens gostam de esporte e mulheres de tomar sol. E se você for uma namorada fissurada no surf, ainda pode tirar umas fotos do meninão na água!

    Esse estereótipo se reflete na água até hoje. É como se nós, mulheres, estivéssemos invadindo um espaço "concedido" aos homens. E somos tão teimosas que queremos fazer algo que nem levamos jeito. Mas saindo desse contexto, quando comparamos pessoas dentro da mesma realidade, por exemplo, as crianças que estão aprendendo desde cedo, meninas evoluem num passo semelhante ao dos meninos. Se colocarmos a Caroline Marks de apenas 17 anos, que surfa desde criança, no meio de um crowd comum de homens adultos, sem dúvidas vai surfar melhor que a grande maioria. Assim como muitas outras da nova geração.

    Porém, a questão vai além da habilidade. Independente do nível de surf, já que a grande maioria dos surfistas não são profissionais:


    _o problema está na disparidade de posturas em relação ao gênero na água.


    Em grande parte das ocasiões, quando mulheres ganham algum espaço no surf, são voltados à sua objetificação. Um corpo bronzeado, magro, de preferência novo, cabelos queimados. Se não for assim não tem espaço! Se surfar bem é melhor, pois na hora da cavada vamos dar aquele close na "rabeta".  Mas se não surfar muito, um joelhinho já faz a foto.

    De forma alguma estou criticando aqui mulheres que tenham esse estereótipo, ainda mais porque, naturalmente, se você surfa, vai ficar bronzeada e seus cabelos vão queimar. Mas sim, faço a crítica sobre como a representatividade feminina na mídia está baseada na imagem da mulher, não em seu desempenho no esporte.

    Lendo entrevistas sobre surfistas femininas, me deparei com a seguinte chamada numa revista renomada de surf/skate: "E você, leitora da HARDCORE, sejamos sinceras: magra, linda, bem-sucedida, bem-casada, boa mãe e sem celulite, e que de quebra surfe bem. Quem aqui não quer o pacote completo. A freesurfer (...) é linda, magra, não tem celulite e surfa muito." Uma entrevista extremamente infeliz. A surfista em questão reafirmou diversas vezes que o que a torna a mulher que é, é sua experiência no surf. Mas todo conteúdo da entrevista girou em torno de questões como corpo e pegação, e pouco se falou da surfista dentro d'água. O fato de ela ter surfado Jaws quase que passa batido perto do fato de ela ser linda, magra e sem celulites.

    A abordagem negativa da mídia vai além. O surf depois que estourou nos meios de comunicação, veio com essa pressão "Medinizadora". As pessoas que estão na água tem como obrigação evoluir para um dia se tornar tão boas quanto o Gabriel Medina. Se você é mulher, está numa posição ainda pior, pois automaticamente está num degrau abaixo nessa escala evolutiva. Assim, os homens surfistas, por caridade, se sentem na obrigação de dar aquela palpitada no seu surf para que você com muito esforço possa um dia, quem sabe, subir no mesmo degrau que eles.


    _essa cultura cria um fetiche no ato de surfar que gera consequências negativas. Além de um crowd muito mais agressivo, a ideia de alcançar um nível surf profissional pode trazer uma frustração durante toda sua jornada.


    Você nunca estará satisfeito com o presente, pois em sua mente você está longe de se tornar o que esperam de você. Acredito que isso aconteça independente do gênero, mas quando transpomos essa situação para a mulher é ainda pior. Temos esse "atraso" com a nossa iniciação no surf, assim, a maior parte das mulheres na água está ainda mais longe de conquistar esse lugar. Porém, penso que não necessariamente todos os dias que entramos na água são para evoluir nossa técnica e habilidade. Logo, sermos constantemente avaliadas não faz sentido.

    O surf pode transbordar a barreira do esporte e ser um momento íntimo do seu eu consigo mesma e com a água salgada, sem a pressão de surfar como as pessoas querem que você surfe. Mas a abordagem da mídia com o surf vai na contramão desta essência. A mídia enraíza esses comportamentos negativos e coloca as mulheres que estão na água num cenário hostil. O surf em seu cerne está perdendo significado para o surf que é vendido na revista: cada vez mais agressivo e competitivo, colocando a mulher numa posição de enfeite. As razões que levaram cada indivíduo a buscar refúgio em meio ao mar estão ficando mais distantes, dando lugar ao surf ostentação.


    _ai fica a reflexão:


    Como essa pressão toda influencia nosso comportamento e autoestima dentro d'água e, principalmente, quem se beneficia com essa cultura?

    Beijos e boas ondas,
    Fernanda


     
    Leia também: Desabafo #8: machismo dentro d'água
    Você sabia que nós somos um blog colaborativo? Nossa missão é inspirar mulheres a surfar e um dos passos nesse caminho é dar voz as próprias mulheres. Uma seguidora da @langaibr enviou esse texto pra gente por livre e espontânea vontade, se você também quiser compartilhar um desabafo ou conhecimento que seja útil pra mulherada surfista, é só clicar aqui!

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